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Há Esperança?

Há quase dois anos tenho pensado constantemente na palavra Esperança. Vários dicionários a definem como um sentimento de quem vê ser possível a realização daquilo que deseja; ou como a confiança de que coisas boas podem acontecer; ou simplesmente como o ato de ter fé. Eu tenho pensado na Esperança como a única coisa que não pode morrer dentro de mim. Penso muitas vezes que se a deixar morrer será o fim, o fim de tudo. Porque se uma pessoa não tem Esperança, se já não acredita, se já não tem fé, ela desiste. Desiste de si, das outras pessoas, de tudo que está à sua volta.

No entanto, infelizmente, num país como o nosso a Esperança custa caro: custa-nos energias físicas e emocionais, custa-nos tempo e uma busca infinita de forças para nos conseguirmos manter em pé a lutar por dias melhores. Queria eu viver num país onde acreditar no bem-comum não doesse tanto…

Em Angola, todos os dias a nossa Esperança luta contra inúmeras adversidades para se manter viva. E se somos de contextos onde vivenciamos diferentes níveis de pobreza essa luta é ainda maior. As adversidades lembram-nos da fome no prato da criança; da mãe a pedir esmolas para os filhos na esquina lá da rua; das crianças que não aprendem o ABC porque as salas de aulas não chegam; do hospital que não tem médicos e medicamentos suficientes para todas as pessoas; da luz que sempre vai; da água que nunca chega de todo às torneiras; da seca ali naquela região que também é nossa; do jovem que não é considerado cidadão porque não consegue emitir o B.I na sua localidade; da televisão que não passa as verdades; e do polícia que bate na zungueira sem perceber que estão no mesmo barco. Essas adversidades lembram-nos também que muitas vezes o nosso acesso ao básico precário dos serviços sociais está condicionado a termos determinado sobrenome, determinada filiação partidária e determinada rede de contactos.

Como manter a esperança num país em que “somos todos iguais, mas uns são mais iguais que outros”? Honestamente, não sei qual a resposta para esta pergunta. Mas acredito que não podemos simplesmente desistir, não podemos simplesmente olhar para o aqui e o agora e agir como se o colectivo não importasse, como se ter um país que funcione bem, em todos os campos, não fosse beneficiar a todas e todos, principalmente àquelas e àqueles que no quotidiano vivem em situação de precariedade socioeconómica.  

É o colectivo que tem de nos dar forças: não podemos desistir uns dos outros e das outras. Este país é nosso! Mesmo que hajam pessoas ambiciosas e corruptas que há anos tentam fazer-nos crer no contrário. Este país é nosso: não temos outro pelo qual lutar, não temos outro em que acreditar. A nossa Esperança deve fazer-nos acreditar nele e, acima de tudo, não parar de lutar por ele. Haverão dias extremamente difíceis, mas quando assim for espero que consigamos encontrar lugares e pessoas que nos confortem, que nos ajudem a recarregar baterias e a seguir.

Eu queria viver num país onde ter Esperança não me custasse tanto…! Queria mesmo. Mas sigo, sigo só. Acredito em dias com mais luz. Não tem outro jeito!

Eu sei que é difícil, mas peço-vos por este país que é de todos e todas: por favor, mantenham a vossa Esperança!

Lugares!

LUGARES

Pensar em como os lugares nos afetam não deve ser uma coisa comum no nosso dia a dia. Não pensamos, acho, até que mudanças significativas nos aconteçam.

Sempre adorei o Namibe! Minha terra tinha qualquer coisa que me fascinava: era a calmaria? Era aquele mar tão lindo, tão cheio de si, não tão longe de casa? Eram as noites bonitas de todos os fevereiros? Ou era o ar fresco dos fins de tarde? Não sei… talvez seja uma dessas coisas ou todas ao mesmo tempo. A verdade é que aqui, nessa Lisboa onde me encontro, penso em como será a minha relação com os diferentes cantos dessa cidade, com o passar dos dias. É inevitável fazer comparações, é inevitável pensar se chegarei também a ter sentimentos por esse chão que agora piso.

O que nos faz criar laços com os lugares? Serão as pessoas? As ruas? As calçadas? Os cheiros? As paisagens? As flores na esquina? O pôr do sol visto de lá da varanda? Ou o vento que nos passa pelo corpo em cima de um miradouro?

Os lugares por onde ando ainda não são tantos. Vou conhecendo aos poucos, à medida que se torna necessário movimentar-me entre eles. Recebo dicas de amigos e amigas o tempo todo: “tens ir à Rua Augusta”; “tens de ir à Alfama e perder-te por lá”, “tens de ir a Belém”, “tens ir às praias enquanto ainda há sol”, “vai andar pelo Rossio e pelo Chiado”, “vai ao Oceanário”, vai ali, Leo, vai ali. Tantas dicas que, apesar de saber que vêm do coração e vontade genuína das pessoas de me quererem ajudar a descobrir a cidade, não sei como gerir nem lidar. Muitas vezes respondo dentro de mim “obrigada pela dica, mas ainda mal consigo respirar em Lisboa e situar-me, quem dirá já andar por tantos lugares, vou levar algum tempo”. Mas não, não digo às pessoas que me são tão queridas o quanto ainda preciso de assentar e andar devagar, a resposta é sempre “obrigada pela dica, vou passar por lá sim”. A verdade é que levo sempre tempo, demasiado tempo a processar coisas e lugares novos, mesmo em Angola era assim. Lembro-me das minhas primeiras estadias em Luanda, era uma Odisseia tentar situar-me na cidade. Eu que vinha do Sul, de uma cidade mil vezes mais calma, menos barulhenta, com menos gente e tinha de aprender a movimentar-me dentro e depois fora da cidade de Luanda… Luanda com mares de gente, correrias, engarrafamentos, sons de todos os lados e um frenesim infinito – entrava em desespero muitas vezes, mas não contava a ninguém, tive de aprender a sobreviver. E aprendi.

Ainda não consegui passar de facto em todos os lugares que me recomendaram ir em Lisboa – os que citei acima são um exemplo, tenho uma lista com muitos mais nomes de ruas. E digo passar “de facto” porque já até andei por algum ou outro lugar, ou de dentro do autocarro ou a andar com outras pessoas, mas não tive ainda momentos meus com esses lugares, momentos suficientes, momentos onde pudesse começar a criar algum tipo de relação com as coisas à volta deles, momentos onde pudesse absorver detalhes com calma… e detalhes, penso aqui e agora, são importantíssimos na construção da nossa relação com os espaços. São os detalhes que ficam na nossa cabeça, no nosso coração.

Pelos sítios por onde já passei, um dos detalhes que mais me chama atenção é a arquitetura dos edifícios. Lisboa é uma cidade de edifícios, o que contrasta com o lugar de onde venho. Alguns desses edifícios carregam em si marcas fortes da passagem do tempo. Um tempo que certamente reflete vidas, memórias e história. Edifícios por todo o lado fazem-me pensar em como a vida não é mesmo igual: como as pessoas aqui vivem sem quintais? Vivem, simplesmente. Não sentimos falta do que não nos acostumamos a ter. E eu? Sobreviverei sem o quintal da casa da mamã? E aquele mamoeiro que me dava sombra e acolhia nos dias quentes? E a esteira no chão, a mamã sentada lá e a minha cabeça no colo dela: como se passa bem sem isso? Não sei ainda, mas vou descobrir. Os novos lugares de Lisboa hão de ajudar-me a descobrir. Já começo a ter mais vontade e leveza para ir andando por todos eles.   

A Chegada!

Um aeroporto enorme aparecia-me à frente. Pessoas iam e vinham de todas as partes do mundo. Sem conhecer nada nem ninguém com quem pudesse falar, restava-me a opção de seguir o mesmo caminho que todas as pessoas do meu voo seguiam, na esperança de estar a caminhar para o sítio certo.

Chegamos à fila da emigração. Era enorme, com uma diversidade incrível. Perguntava-me se haviam mais pessoas que, por segundos, estavam atentas à multiplicidade étnica e racial que ali éramos. Certamente, pensei, haviam pessoas que estavam tão habituadas àquilo e já nem era nada. Chegar e partir repetidas vezes devia ser normal para muita gente ali…, só não era para mim. Não era! “Nalgum dia chegará a ser?” Meus pensamentos são interrompidos pela tentativa súbita de procurar entender as direções dentro do aeroporto: por que portas devia entrar e sair? Onde buscar as malas? Deverei perguntar por informações a quem? Como dirigir-me às pessoas?

As perguntas na minha cabeça calaram-se novamente. O coração começou a falar alto e mais alto. Conseguia ouvi-lo dizer que estava apertado ainda, quase a sufocar. Segura-te, digo-lhe. Segura-te mesmo. Não podemos entrar em desespero agora, não podemos sentir medo agora, não podemos pensar em casa agora. Por favor, não tentes sentir Luanda agora: Luanda já não está aqui. Temos de concentrar energias em conseguir sair deste aeroporto.  

Em simultâneo, nos auriculares repetia-se uma música, uma música que vinha comigo desde Luanda. Dentro da mente, repentinamente, comecei a cantar o refrão “viver é partir, voltar e repartir”. Ouvi, cantava e tentava a todo custo agarrar-me a essas palavras. O que terá passado na cabeça do Emicida quando escreveu esta letra? Esse refrão faz tanto sentido para ele, aqui e agora, como faz para mim? Terá o Emicida sentido a dor de partir de algum lugar? Não sei. São demasiadas perguntas para quem acabou de chegar. Nisto, a fila seguia aos poucos…

Eu parecia um zombie: corpo físico presente, a avançar ao ritmo da sua posição na fila, mas a mente e o coração vagueavam. Tentava, nalguns momentos, reconhecer alguma coisa que me fosse familiar. Em certos instantes teimava em encontrar familiaridade com o que me rodeava. Era um bocado um inconsciente. Penso que a nossa mente vai fazendo isso para enganar a sensação de nos sentirmos perdidas/os. No entanto, nada, absolutamente nada na chegada me era familiar. E essa certeza diante de mim era mesmo a prova de que já não estava lá, agora, estava aqui.

Quanto custará essa passagem pelo aqui? Não sei. Continuo a levantar demasiadas questões. “Não terás respostas, sossega”, uma voz grita isso dentro de mim em alto e bom som. Tento então sossegar enquanto a fila anda, enquanto a música também continua. E é isso: partir, voltar e repartir – como canta o Emicida. Mesmo que não se saiba quando e como será essa volta, parece, sempre acontece. Sempre partimos de e voltamos a algum lugar… um lugar que pode ser na esquina ao lado, na cidade ao lado, na província ao lado, naquele país que é nosso desde sempre ou que passou a ser, ou, de várias formas, partimos de e voltamos a nós mesmos.

Sossega, Leo! Pega as malas, as portas estão logo ali a serem indicadas pelos sinais de saída. Chegaste mesmo. Agora é isto: é real. Não há voltas a dar, a não ser aquelas que te levem a descobrir Lisboa. É preciso, a teu ritmo, absorver e “curtir” essa chegada, com tudo que isto implica. Vai. Vai ficar tudo bem.

Resistência é a palavra de ordem do nosso tempo!

Manas, escrevo para vocês estas linhas. Minhas companheiras de luta, de várias frentes e de vários ângulos. A todas vocês, mulheres que singular e colectivamente não se têm deixado vencer pelas armadilhas do patriarcado e do machismo escrevo para vos dizer que estamos juntas.

Cada dia que passa, particularmente percebo como é importante continuarmos a resistir. Sim, é preciso continuar porque ainda há um longo caminho. Infelizmente, as conquistas de uma época podem ser invisibilizadas em outra época e quando menos esperamos, às vezes, surgem mudanças que nos fazem regredir. Mas, resistir é preciso, mesmo quando tudo parecer escuro, haverão sempre luzes lá ao fundo e estas mostrar-nos-ão que o nosso esforço vale a pena.

Conforta-me ver nos últimos tempos todo o movimento de mobilização e apoio em torno dos debates sobre a opressão sistémica que afecta as mulheres. Conforta-me ver como nos mobilizamos, partilhamos conhecimentos nas redes sociais, criamos pontes de solidariedade dentro e fora do virtual e incentivamos umas às outras a não mais calar perante injustiças. Vocês são um conforto enorme para o meu coração, reforçam a minha esperança.

Eu sei que muitas vezes a resistência acarreta dor, cansaço, somos humanas e é natural. Mas é nesse sermos humanas também que além da dor, do cansaço existem as possibilidades de nos reerguermos, de limpar as feridas, de amenizar e acabar com as dores mesmo que devagar. Eu sei que há dias em que fica tudo muito difícil, dá vontade de largar tudo, de se deixar levar pelo sistema, de baixar as armas e fingir demência porque as opressões são tão profundas que parecem nunca ter fim. Eu sei que há dias onde tudo o que nos perguntamos é “será que algum dia vou parar de ter medo de sair à rua (de dia ou de noite, sozinha) sem que me sinta como uma presa ou alvo fácil?”…

Eu sei que é difícil perceber como todo processo intenso de socialização combina inúmeros factores para nos dizer que devemos ser submissas, aceitar tudo, sacrificarmo-nos por tudo, abrirmos mãos de sonhos, anularmo-nos para sustentar relacionamentos, lares sem que nos tenhamos em conta.

Eu sei o que é ter crescido e viver numa sociedade onde muitas vezes não se pode ter voz ou se tem de gritar para se fazer ouvir, para ser levada em conta, para ser respeitada e para ser entendida como uma pessoa com direito a plena liberdade de ser e de viver. Mas é a noção dessas coisas todas que volta e mais volta faz-me pensar na importância da resistência porque nós temos de ser os sujeitos principais nas conquistas por espaços que também nos pertencem.

Lembremo-nos sempre que o nosso tempo de resistir é agora, é hoje e até quando tiver de ser. Lembremo-nos também que esta resistência terá frutos, mesmo que não sejam todos colhidos hoje e amanhã por nós, serão colhidos pelas mulheres que vêm a seguir a nós, tal como nós colhemos os frutos das lutas das outras mulheres que nos antecederam.

Este é o nosso tempo, o nosso aqui e agora, vamos resistir. Não serão só flores no caminho, mas teremos vitórias também, veremos outras mulheres a caminharem para a liberdade. Vamos inspirar-nos umas nas outras, vamos inspirar-nos nas nossas ancestrais, vamos inspirar-nos nos vários outros movimentos de luta pelos direitos das mulheres pela África e pelo mundo, vamos colher exemplos e lembrarmo-nos desta rede que se estende além-fronteiras. Sigamos juntas, por nós, pelas manas e para as manas!

Alguma coisa não está bem

Preocupou-me bastante o índice de negativas nos resultados do concurso público que foram publicados recentemente, um pouco por todo o país.

Desde que pousei os olhos nas pautas daqui do Namibe, e naquilo que vi pelos órgãos de comunicação social e nas redes sociais, não parei de pensar nesses resultados. Por exemplo, na terça-feira passada, 24 de Julho de 2018, o programa Jornal da Tarde da TPA1 noticiou que dos 3 mil candidatos que fizeram exame na província do Bengo 70% foram reprovados. Vi, no mesmo dia, ainda neste jornal, imagens de pautas de alguns cantos de Luanda onde o vermelho predominava. Da Huíla, vários amigos partilharam nas redes sociais imagens de pautas onde as notas eram péssimas e predominava o índice de reprovados.

Olhando para resultados tão desanimadores, penso eu, que estamos diante de um problema sério e que precisa ser reflectido por todos. Aos candidatos deste concurso público exigiu-se, sobretudo, que tivessem formação em Educação, salvo algumas excepções que eram relativas a cursos cujas especialidades extrapolavam a formação que se recebe nas Instituições de Formação de Professores. A base desse concurso era que os candidatos tivessem feito o Ensino Médio ou o Ensino Superior em Instituições de formação de professores.

Entretanto, chegados até aqui, deparamo-nos com uma grande maioria vinda de Instituições onde se formam professores a apresentarem resultados péssimos. Deparamo-nos com um tanto de notas a rondarem entre 0 a 6 valores. Como se explica, olhar para uma pauta de pouco mais de 300 pessoas a concorrem e chegarmos perto de 10 notas positivas? Onde é que está o problema?

Os alunos é que são os preguiçosos? Os alunos é que foram os preguiçosos e menos dedicados durante os anos de formação? As provas foram muito difíceis? As comissões que elaboraram as provas queriam dificultar a vida aos candidatos? As pessoas que corrigiram, em simultâneo, nas diferentes disciplinas, nos vários cantos do país, decidiram atribuir notas baixas a maior parte dos candidatos? A formação dos candidatos é questionável? A formação dos ex-professores dos candidatos é que é a questionável? As Instituições de Formação de Professores têm funcionado em condições? O NOSSO SISTEMA DE ENSINO tem funcionado? A base do nosso Sistema de Ensino tem funcionado? Onde é que está o problema?

Se temos esse tipo de classificações a nos serem esfregadas à cara, penso que, é um sinal de que alguma coisa não está bem. Então, precisamos sentar, como se estivéssemos à sombra de uma mulemba, para conversar sobre o futuro da nossa Educação. Atrevo-me a dizer: sobre o futuro do nosso país. Aflige-me pensar e ver que os resultados de um período de formação nas nossas Instituições de Formação de Professores nos sejam, posteriormente, apresentados desta maneira.

Não estou a dizer que não existiram e não existem excelentes alunos e excelentes professores nessas Instituições, não é isso. Passei por uma Escola de Formação de Professores no ensino médio e também por um Instituto Superior de Ciências de Educação na faculdade, enche-se-me de alegria o coração quando me lembro de alguns excelentes professores que tive no meu período de formação. Mas, o que me preocupa aqui é a maioria e não as excepções; e a maioria perfaz o vermelho gritante nas pautas, a maioria está a atirar-nos à cara que alguma coisa não está bem e nós precisamos sentar, em conjunto, para conversar com sinceridade.

Muito do que aprendi nos últimos anos, nas Instituições onde passei, resume-se no facto do quão a Educação é importante para o desenvolvimento, a todos os níveis, de um país. A Educação é a maior e melhor herança que uma pátria pode deixar aos seus filhos. Mas essa Educação constrói-se com a ajuda de todos. Para deixarmos essa herança segura e com qualidade precisamos de ter agentes (professores) no Sistema de Ensino/Educação, em primeiro lugar, devidamente formados e, a seguir, comprometidos com a passagem de tal herança. Como vamos construir um caminho de Excelência quando os agentes implicados directamente nesse processo de construção apresentam-se no final da formação dessa maneira?

Que não se entenda essa abordagem como uma crítica a forma como o processo de selecção dos candidatos decorreu. Foi, dessa vez, um processo cuja seriedade notou-se em muitos aspectos e é assim que deve ser daqui para frente, nos próximos concursos públicos para o sector da Educação. A preocupação aqui não é com o processo de concurso mas com o que acontece antes dele. Creio que concorrem vários factores para termos chegado até aqui. Reitero, reitero, que precisamos sentar e falar sobre isso de forma sincera. Eu levanto a mão e voluntario-me para fazer parte dessa conversa.

Os sinais estão-nos a ser dados, devemos dar importância a eles. Pensemos todos não só em nós mas no futuro. Recuso-me a aceitar de ânimo leve que a Educação do nosso país está e estará nas mãos de agentes com uma formação deficiente. Pensemos todos que os professores e as pessoas que passam por eles são e serão servidores públicos nas diferentes áreas que se completam para alavancar o país, nesse caso, de uma forma ou de outra a qualidade da formação que tanto alunos como professores recebem diz respeito a todos. Estamos numa máquina onde, mesmo que não nos vejamos a todos, cruzamo-nos de alguma forma nalgum sítio de serviço ao público. Então, pensemos todos no que queremos para hoje e para amanhã!

Redefinir Prioridades e pensar nas Necessidades: precisa-se!

As prioridades e as necessidades são daquelas coisas que todas as pessoas que governam um país ou outro sítio qualquer deviam ter a plena noção e mais do que isso deviam lembrar-se todos os dias. Prioridade, segundo uma definição retirada de um dicionário algures, é aquilo que está em primeiro lugar ou aquilo a que se dá primazia, e Necessidade é o que realmente se precisa e essencial para o bem-estar. Mas nós, por cá, andamos num ciclo vicioso – há muito tempo – que consiste em deixar as prioridades e necessidades reais sempre em segundo plano. Se não se sabe o que o povo realmente precisa, e, principalmente, se não se conhece as reais necessidades do mesmo então o resultado é este: dar a mínima atenção aos problemas reais das pessoas.

Um país, acredito eu, se faz e se constrói com as pessoas que vivem nele, em função disso essas pessoas precisam ser valorizadas e postas em primeiro plano. Se se criam projectos e definem-se planos a nível macro, meso e até micro estes tem de reflectir o cidadão, as necessidades reais do mesmo e acima de tudo precisam ir ao encontro de tais necessidades para as suprir.

Longe de desmerecer e desvalorizar tudo que já se fez, precisamos pensar, cada vez mais e com mais seriedade no que ainda não se fez. Ficar só pela intenção não basta, ficar só pelos projectos nos papéis também não basta e ficar só pelas visitas também não basta. É importante que quem governa crie mecanismos para chegar até ao “cidadão comum”, e mais importante é que quem governa se lembre do cidadão todos os dias depois do dia do voto! Começamos uma nova era depois das eleições de 23 de Agosto, pode não parecer mas começamos sim. É fundamental que nessa nova era se priorize tudo o que não se tem priorizado de facto ao longo desses anos, que se dê as pessoas dessa vasta Angola não apenas migalhas mas se criem verdadeiras condições para a melhoria da qualidade de vida.

Existem no nosso país pessoas vivendo em extrema pobreza e só nega isso quem decide viver opcionalmente na cegueira. Existem pessoas sobrevivendo com 1000 kz por semana ou menos. Existem pessoas nesse país tentando conseguir ter ao menos uma refeição por dia, vivendo o extremo da pobreza, enquanto noutro extremo existem pessoas vivendo em pontos altos da riqueza e com privilégios até acima do pescoço. Um país sadio não se constrói assim, não se desenvolve com essas enormes desigualdades.

Gritam, silenciosamente, todos os dias as inúmeras crianças fora do sistema de ensino. As inúmeras crianças que gostavam de ter as mesmas oportunidades, o mesmo acesso a um caderno e a um lápis para também construir um futuro para si mesmas. É necessário pensar nessa Angola que estamos “com ele” e ver para onde estamos a ir. Acredito que ainda temos tempo de mudar, de nos orientarmos e nos melhorarmos.

O rapaz disse-me “mana, estudei até a 5ª classe, mas parei porque a escola fechou, era na igreja. A professora foi embora e como a mamã não tinha dinheiro para nos matricular noutra escola minhas irmãs e eu estamos sem estudar. Mas eu queria muito continuar a estudar só que tenho de vender para ajudar a mamã lá em casa, normalmente o que ela vende não chega muito então tenho de ajudar…” e eu ouvi isso com uma vontade enorme de chorar. Só pude dizer-lhe que esperava que nalgum dia ele e outras crianças tivessem as mesmas oportunidades. Queria também poder dizer-lhe que gostava de ter poderes para poder mudar o mundo e torná-lo melhor.

Esse rapaz é o reflexo de muitos outros e sua mãe também é o reflexo de muitas mães desse país a fora. Desse país rico e onde, acredito, podemos caber todos! Cabemos sim, se se investir na promoção da igualdade e justiça. Cabemos sim, se se investir naquilo que é prioritário e realmente necessário para o povo. Lexus não constroem escolas, só perpetuam desigualdades; aeroportos em localidades onde para se viajar de carro já é uma luta enorme para muitas pessoas não melhoram muito a vida de quem está a volta deles. Orçamentos do Estado em que se investem pouco em Saúde e em Educação demonstram claramente que se precisa redefinir as prioridades e pensar nas necessidades da população.

É imprescindível pensar e constantemente buscar entender o bater do coração desta Angola enorme e de todos para, deste modo, de facto “corrigir o que está mal”!

Pensem nas inúmeras crianças que ficarão fora do sistema de ensino por mais um ano e por um momento coloquem-se em seus lugares. Sentem a dor delas?! Se não sentirem, então o buraco é ainda mais fundo do que pensamos.

 

Quem olha por nós afinal?

Crescemos com a crença de que família é para todos os momentos. Essa crença é mais forte em uns do que em outros, o que é natural de acordo ao ambiente e lar em que individualmente crescemos. Desde pequenos ensinam-nos a respeitar o tio(a) mais velho, o primo(a) mais velho, o amigo do pai ou da mãe mais velho e este último mesmo não sendo parente directo, ainda assim deve ser tratado como tal. E destas pessoas, pela consideração que aprendemos a ter, esperamos tudo menos que nos façam algum mal. Mas e quando as pessoas em quem supostamente devíamos confiar são as que nos causam alguns dos piores males?!

O assédio sexual dentro da família é, infelizmente, um dos males mais reais da vida de muitas mulheres na nossa sociedade. São as pessoas que sentam à mesa connosco, que sorriem para nós, que vêm lá a casa para visitar a família ou até mesmo que vivem connosco que criam um ambiente que nos oprime, que nos deixa sem saída e que nos faz viver dias de tormentos.

Quantas mulheres e meninas carregam – e carregaram – em si a pressão do assédio daquele tio, o mais velho da família, o “respeitado” e que todos tinham como exemplo? Quantas mulheres e meninas carregam na alma e no corpo as marcas do estupro que teve início com o assédio constante daquele primo directo, o mano que ia constantemente lá a casa visitar a família e que todo mundo adorava? Inúmeras! Muitas de nós carregam marcas dolorosas de situações de assédio. Marcas que nos mostram como a violência contra as mulheres ainda é maioritariamente normalizada e negligenciada e que, infelizmente, nem dentro da família estamos totalmente a salvo.

E não estar totalmente a salvo dentro da família não tem que ver apenas com o facto de serem parentes próximos – ou distantes – os primeiros a nos assediarem, mas também com o facto de ser a própria família que mesmo despois de tomar conhecimento de situações de assédio e em muitos casos de abuso sexual oculta e fecha os olhos como se nada tivesse acontecido sob pretexto de se “salvaguardar o bom nome e harmonia na família”. Todos conhecemos algum exemplo daqui e dali!

O silêncio e a falta de acção da família nesses casos torna mais vulneráveis as vítimas, contribui para que estas se silenciem, não denunciem e perpetua o ciclo de opressão a que mulheres estão e são sujeitas. Se se cresce num lar onde se está acostumada a ver as pessoas que nos rodeiam não darem importância a violência que as mulheres sofrem e ao sofrimento que isso lhes causa, então fica-se sem armas para lutar, para denunciar, para resistir contra quem nos magoa. Se se cresce num lar e numa sociedade em que se culpabiliza as mulheres por tudo, pelas feridas e dores que os outros lhes causam então vemo-nos obrigadas a reprimir o que sentimos, a suportar e a permanecer de cabeça para baixo com vergonha do que não fizemos. E mais do que tudo com medo!

Se todas as mulheres contassem tudo que já passaram por conta do assédio veríamos como estamos diante de um problema que não tem nada de leve. Se todas pudessem contar sem medo e sem a culpa – que nos ensinam a carregar – saberíamos o quão assustador é o número de mulheres que já foram assediadas antes dos 15 anos dentro da própria família.

É imprescindível que enquanto família se tome atitudes perante casos de assédio. Procurar manter “a harmonia no lar” pode simultaneamente significar destruir vidas, cavar buracos de dor e deixar marcas incuráveis na alma das meninas que têm de lidar com isso uma e outra vez. É importante também falar sobre isso dentro e fora da própria família, que se vençam os tabus, que se deixem de lado as aparências, que parem as tentativas de preservar a imagem dos irmãos, tios mais velhos, primos, amigos de casa que fazem mal às meninas. Precisamos encarar o assédio como um problema não menos importante que os outros e procurarmos soluções para o mesmo.

E acima de tudo, importa que se criem pontes, dentro e fora de casa, que transmitam segurança as mulheres e meninas nesses casos. Que se criem laços e se mostre as nossas irmãs, primas, sobrinhas, amigas que elas não estão sozinhas e podem sempre contar com o nosso apoio.

 

Sem dívidas!!

Uma cena que acontece muito quando se está na sala de espera de algum sítio onde se presta serviço ao público é despropositadamente encontrarmo-nos a ouvir conversas que não queríamos e preferíamos que fossem tidas a quilómetros de distância de nós. Normalmente, isso acontece porque existem inúmeras pessoas que não percebem a importância de falar baixo e respeitar os outros ao lado. E ainda, há outras que com a intenção de gabar-se por alguma coisa, no meio de muita gente, ao contar a alguém seus feitos “prodigiosos” elevam o tom de voz para que todo mundo ouça e fazem aquele papel ridículo de falar ao vento porque normalmente tais feitos não interessam nem a metade de quem está a volta.

E numa dessas situações, que infelizmente não foi a primeira, muito recentemente, enquanto esperava a minha vez de ser atendida (num sítio de serviço ao público) dei por mim a ouvir uma conversa desagradável – pelo menos para mim. Estava na fila, atrás de mim, um jovem a gabar-se alto aos amigos ao lado do facto de bater na namorada várias vezes como forma de se impor e de fazê-la ter respeito. Depois de ouvir isso e ter ficado desconcertada eis que o relato do jovem continuou e acrescentando aos horrores que dizia referiu bater na irmã também como forma dela aprender a respeitar os homens. Ele falava como “herói” e os amigos concordavam e exprimiam satisfação na forma como apoiavam o outro que se orgulhava de ser um homem que “sabia colocar as mulheres nos seus devidos lugares”. Não queiram imaginar como me senti e reagi a tudo isso, não foram sensações agradáveis.

O que pretendo reflectir aqui, com esse exemplo real de relato, é como a violência contra a mulher e nessa abordagem em específico a agressão física é normalizada. O relato do jovem acima pode parecer ser um caso isolado: só que não! Pode também ser só mais um caso e, na verdade, é só mais um caso mesmo. Entretanto, um caso que, a semelhança de tantos outros, nos devia importar e preocupar. Numa situação como essa a pessoa não sabe se se sente mal por ouvir alguém relatar com satisfação que agride outrem ou se se sente mal por ver os outros concordando com a mesma satisfação e pelos motivos mais ridículos do mundo.

É bastante comum, infelizmente, na nossa sociedade a violência física (agressão) contra a mulher. Muitos de nós já presenciamos ou já ouvimos falar de algum caso desses – próximo ou distante. Inúmeras mulheres, todos os dias, são agredidas por pessoas próximas a elas e em muitas das vezes os agressores acabam impunes e vão repetindo e repetindo o processo de agressão por causa da impunidade. Infelizmente, essa impunidade é subsidiada, por um lado, pelo sistema de justiça que começa em primeiro lugar por perguntar a mulher o que ela “fez” ou se “provocou” e automaticamente a transmitir de forma directa ou indirecta a ideia de que a mulher é sempre culpada e com isso desvia o foco do agressor e quando o pune acaba sendo de forma leve muitas vezes. E por outro lado, pela sociedade que muitas vezes fecha os olhos diante de relatos como o referido no início deste texto e justifica o agressor com argumentos absurdos como os do “respeito.”

Uma coisa que parece estar enraizada na cabeça de muitos homens (e de mulheres também por força da socialização) e que infelizmente, parece, se transmite de geração a geração é que as “mulheres devem respeito aos homens porque eles são homens” e basta! É frequente ouvir argumentos absurdos do tipo “ah, mas ela tem que me respeitar porque sou o homem; ah, mas ela tem de obedecer e ser submissa porque ele é homem; ah, mas o homem é homem e manda e mulher deve-lhe respeito por isso”. Tais argumentos são sustentados por ideologias religiosas, por costumes, por tradições e por culturas que normalmente favorecem mais a uns do que a outros, ou seja, privilegiam homens e subalternizam e oprimem a liberdade e direitos das mulheres. Nisto, importa realçar alguns pontos que considero serem muito importantes:

· Mulheres não devem nada aos homens!

· Se, naturalmente (tendo em conta o primeiro ponto), mulheres não devem nada aos homens, então a escala de “dívidas” que já é de 0% permanece no mesmo número quando o argumento é “elas devem porque eles são os homens”;

· Ninguém se consegue fazer respeitado por meio da violência! O máximo que se consegue quando se parte para a agressão física com o intuito de ganhar respeito é, no fundo, que o outro tenha medo e possivelmente desenvolva desprezo por nós, mas respeito não!

· O mundo não gira em torno da religião de uns e de outros, por isso, só porque a tua religião diz que “mulheres devem respeito e submissão aos homens” não significa que esta é uma verdade absoluta e que o mundo todo tenha de a seguir ou ter como padrão moral máximo;

· Culturas, tradições, costumes que privilegiem mais a uns que outros e perpetuem formas de injustiça e de opressão não devem ser mantidos ou endeusados. É necessário questionar e ver até que ponto aquilo que mantemos como correcto e “cultural”, afinal não tem base justa!

Quando se quer manter posições de privilégios e perpetuar a ideia do “respeito” são frequentes argumentos, de que “isso é nosso; é cultural ou tradicional; é africano; no tempo dos nossos pais já era assim…” e por aí vai. Entretanto, enquanto seres que pensam é importante nos questionarmos, questionar os nossos modos de vida, principalmente quando estes modos são injustos. Qualidade de vida, bem-estar social, justiça e igualdade entre todos são estágios que passam também pelo questionamento, pela auto reflexão dos nossos privilégios e de se estar disposto e aberto a abrir mãos destes quando se quer de facto um mundo melhor e justo.

Particularmente, acredito que pessoas que necessitem recorrer a violência física como forma de obter respeito são as que menos respeito merecem. Somos todos seres humanos, nem menos nem mais do que uns e os outros. Se deve haver respeito é por isso: por sermos todos iguais e merecemos o mesmo tratamento em todos os níveis e espaços (tanto públicos como privados). Por isso, não permita que sistemas de opressão contra as mulheres permaneçam, não permita que a violência física contra as mulheres se perpetue, podemos todos fazer alguma coisa. Podemos nos sensibilizar uns aos outros e chamar atenção para a justiça respeito aos direitos de todos. Violência física é crime e não deixar passar é uma forma de contribuir para uma sociedade que seja realmente de TODOS!

Vidas de areia: retratos…

Lugares, desde países às pequenas ou grandes cidades, são construídos e marcados pelas pessoas que habitam neles. São as vidas, as histórias das pessoas que caracterizam em grande parte os lugares em que estas vivem. Vidas De Areia, livro de Divaldo Martins, além de representar muitas outras coisas é prova da primeira afirmação feita no início deste texto. Um retrato de vidas singulares e que se cruzam em algum momento, um retrato de lugares, de momentos… E quem sabe não será também um retrato de um pouco de cada um de nós?! Um retrato mais directo para uns e menos para outros.

 As histórias que se entrelaçam no livro têm como palco principal Luanda, entretanto outros lugares de Angola são também representados pela rica diversidade de personagens que perfazem a obra. E a riqueza de Vidas De Areia está patente não só na diversidade das personagens, na forma como estas foram construídas e como suas histórias de vida prendem o leitor a cada linha escrita, mas também nos modos de apresentação da narrativa onde se destaca de forma fascinante o processo de descrição. Percebe-se que por detrás das linhas foram usados recursos de estilo que dão à narrativa um sabor muito bom e denotam o esmero do autor na concepção e construção do livro. Num contexto de uma Angola em guerra civil várias vozes se levantam e contam suas vivências que ora distanciam ora aproximam muito o leitor de cada situação. Dentre estas vozes que se levantam destacam-se as das mães, aquelas que se doaram incondicionalmente e esqueceram suas próprias vidas para viverem com único propósito: sustentar os filhos e dar-lhes uma vida um pouco melhor mesmo quando a esperança se escondia atrás das balas e tiros incertos.

Os conflitos sociais, étnicos e políticos abordados no livro, num contexto de guerra e pós guerra civil demonstram parte importante da nossa história, da história deste país que temos hoje. E quem os presenciou terá um relembrar doloroso em muitos momentos, a medida que for lendo, mas para aqueles que, como eu, não vivenciaram directamente tais conflitos será uma fonte de aprendizado sobre o que a guerra faz com as pessoas, como as transforma para o bem ou para o mal e como consequentemente através das pessoas ela muda um país.

Mergulha-se em reflexões intensas em Vidas de Areia, questionam-se e põem-se à prova valores morais e sociais; as crenças e a fé tanto nalgum ser superior como na própria vida constituem pontos de reflexão importantes também e fazem-nos olhar para nós mesmos: para a forma como vemos o mundo! As vozes de Vidas de areia são retratos de um passado cujas marcas de tão profundas que são se cruzam ainda com o presente, entretanto ensinam-nos também que o futuro pode ser diferente do passado, pode ser melhor, se todos darmos um pouco de nós para que assim seja.

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Através da Chuva: mundos que se cruzam…

Propor-me a falar sobre o Através da Chuva, livro do escritor Miguel Gullander, não é tarefa fácil pois não sou, nem de longe, um daqueles peritos em crítica literária que desvenda os segredos de um livro e traz acima, como um Prometeu, aspectos que os leitores não imaginavam presentes no mesmo. Também não sou uma “gigante” no que concerne a conhecimentos sobre literatura ou uma “entendida” na matéria. Sou apenas uma menina apaixonada pela literatura que acredita no poder da palavra, principalmente no poder da palavra escrita. Além de não ser fácil pelos motivos que já referi, acrescento o facto de se estar diante de uma escrita madura, capaz de nos levar até ao mais profundo do nosso imaginário e questionar as nossas convicções, questionar preconceitos, questionar a nós próprios sobre o sentido da vida. E mais ainda, faz-nos questionar sobre o sentido que damos a nossa vida e como damos.

Entre os vários palcos sobre os quais a narrativa acontece, destacam-se Angola e Suécia, no entanto, destaca-se mais ainda, em relação ao espaço, o casamento perfeito que se faz na obra entre os dois lugares. Dois países distintos, longe um do outro por milhares de quilómetros de distância, com modos de vida diferentes, com culturas diferentes, com tradições diferentes, com mitos e crenças diferentes mas que se cruzam em Através da Chuva e transpõem todas as barreiras possíveis e, sobretudo, mostram-nos que enquanto seres humanos estamos mais entrelaçados do que todos nós imaginámos.

Dois mundos que se cruzam entre personagens singulares que também se cruzam e reflectem-se em espelhos paralelos mostrando um pouco de cada um de nós, independente de onde sejamos ou pertençamos. Somos levados à reflexões: das mais simples as mais complexas. A cada página, um pouco mais de profundidade. Uma escrita que nos mostra e faz sentir a eternidade e simultânea efemeridade do tempo. Esse tempo pode ser o da narrativa – o tão bem trabalhado tempo da narrativa. Mas pode ser também o tempo da nossa vida, do dia-a-dia; o tempo que temos para fazer nossa existência valer a pena ou ainda o tempo que talvez tenhamos para construir um futuro melhor que o presente ou o passado. E esse tempo, na narrativa, é tão inquieto, tão impermanente que nos faz viajar desde o deserto imponente do Namibe, passando pela Baía Azul de Benguela, por Luanda, por Malange por Lisboa até as ruas de Estocolmo na Suécia. E vice-versa.

Aspectos característicos da cultura e espiritualidade africana se cruzam com mitos e crenças suecas de formas ora implícitas ora explícitas. A viagem do velho Svart, o protagonista da história, da Suécia até a Angola com o objectivo principal de avistar uma Palanca Negra Gigante acaba sendo um cruzamento entre dois mundos, dois continentes, dois países distintos mas que se revelam próximos – afinal somos todos feitos pelo mesmo tecido…

A viagem do velho Svart para avistar, no coração de Angola, um animal raro e único em todo o universo, também acaba sendo uma viagem de cada um de nós. Uma viagem para dentro das nossas sociedades e uma chamada de atenção para a forma como as construímos, como as tornamos desiguais e as poluímos com as nossas próprias acções. Uma viagem para dentro dos nossos modos de vida. Uma viagem para questionar os nossos preconceitos de raça, de cor e perceber como matamos uns aos outros por motivos que nunca valem a pena. E no final das contas uma viagem fascinante para dentro de nós mesmos!

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